Emenda Constitucional 103/2019: É o Fim da Proteção Previdenciária do Menor Sob Guarda?

Emenda Constitucional 103/2019: É o Fim da Proteção Previdenciária do Menor Sob Guarda?

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Emenda Constitucional 103/2019: É o Fim da Proteção Previdenciária do Menor Sob Guarda? A Emenda Constitucional 103/2019, disciplinado o benefício de pensão por morte, em seu art. 23, § 6º, dispõe que, para fins de recebimento da pensão por morte, equiparam-se a filhos exclusivamente o enteado e o menor tutelado, desde que comprovada a dependência econômica.

Emenda Constitucional 103/2019: É o Fim da Proteção Previdenciária do Menor Sob Guarda?

O dispositivo controverso coloca em dúvida a manutenção do entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso repetitivo, reconhecendo a qualidade de dependente previdenciário ao menor sob guarda, a despeito de a Lei 9.528/1997 o ter excluído do rol de dependentes dos segurados filiados ao RGPS. Levando muitos a afirmar que o entendimento do STJ estaria agora superado pela nova norma constitucional.

O tema, contudo, não comporta conclusões apriorísticas, demandando uma análise sistematizada da matéria.

Em breve retrospectiva, a Lei 8.069 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), editada em 1990, consigna em seu art. 33, § 3º que a guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins de direito, inclusive previdenciário.

Em conformidade com essa garantia, a Lei 8.213/1991, na redação original do art. 16, § 2º, elencava o menor sob guarda no rol de dependentes previdenciários, equiparando-o a filho. Contudo, em 1996, a garantia estabelecida no ECA é mitigada pela MP 1.523 (convertida na Lei 9.528/1997) que retirou do menor sob guarda a condição de dependente previdenciário.

A justificativa para a alteração da legislação previdenciária se pautava na afirmação de que haveria muitas fraudes no processo de guarda, onde, usualmente, avós requeriam a guarda dos netos, tão somente, para lhes conferir direito de pensão. O argumento é falacioso, não se revelando suficiente para validar a retroação da garantia previdenciária que era ofertada ao menor.

De um lado, parte de uma presunção de má-fé, sem dados comprobatórios, rompendo com o princípio da boa-fé objetiva, onde se estabelece que a boa-fé é presumida e a má-fé exige inequívoca comprovação. Lado outro, se mostra dissonante das balizas jurídicas que definem a situação de guarda, que em nenhuma hipótese amparam concessões deliberadas de guarda de netos a avós. Ademais, o Estado tem instrumentos de fiscalização e controle aptos a combater qualquer possibilidade de fraude, não havendo que se admitir a supressão de direitos fundamentais para alcançar tal fim.

Vale aqui lembrar que o nosso ordenamento prevê somente três hipóteses de concessão de guarda judicial, a saber: (a) no trâmite de processo judicial de adoção ou tutela, regularizando a situação de quem já está, na prática, cuidando de menor (art. 33, § 1º do ECA); (b) quando a transferência da guarda se revelar necessária para atender situações peculiares ou para suprir a eventual falta de pais ou responsável (art. 33, § 2º do ECA); (c) quando o Juízo verificar que os pais ou responsáveis não conseguem cumprir adequadamente o dever de guarda, protegendo assim a integridade do menor ao conferir a sua guarda à pessoa capaz de garantir o cuidado ao menor, dando-se preferência a familiares.

Tem-se claro que a situação de guarda exige comprovação de requisitos específicos e a intervenção do Juízo de Família, sempre com a participação do Ministério Público, o que evidencia que a vaga alegação de fraude não encontra reflexo na realidade de um processo cível que define a guarda de uma criança a pessoa diversa de seus genitores biológicos.

De toda sorte, operada a alteração legislativa, que excluiu o menor sob guarda da proteção previdenciária, o tema passa, a partir de então, a ser debatido nos Tribunais. Por anos a jurisprudência nacional apresentava posicionamentos difusos sobre a questão, alguns entendendo pela impossibilidade de reconhecimento da condição de dependente por ausência de previsão na legislação previdenciária, outros sinalizando que, ante o conflito de normas, prevaleceria a disposição protetiva do ECA, mantendo-se o deferimento de pensões aos menores sob guarda.

Essa insegurança jurídica é solvida pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Resp. 1.411.258/RS, sob o rito dos recursos repetitivos, momento em que se consolidou a orientação reconhecendo ao menor sob guarda a condição de dependente previdenciário, desde que comprovada a dependência econômica em relação ao seu instituidor.

Fundamentos Estruturais

O entendimento do STJ está calcado em dois fundamentos estruturais.

O primeiro deles é a prevalência das disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente, ainda que a norma previdenciária disponha de maneira diversa. Extrai-se do voto que conduz o acórdão do recurso repetitivo que considerando que os direitos fundamentais devem ter, na medida do possível, eficácia direta e imediata, deve-se priorizar a solução ao caso concreto que mais dê concretude ao direito: diante da Lei Geral da Previdência Social que apenas é silente (ou se tornou silente) ao tratar do menor sob guarda e diante de norma específica que estende a pensão por morte aos menores nessa situação (sob guarda), deve ser reconhecida a eficácia desta última, por estar em perfeita consonância com os preceitos constitucionais e sobretudo com a ideologia do sistema jurídico que prioriza a proteção ao menor e ao adolescente.

O segundo fundamento que baliza o acórdão é a prevalência do compromisso constitucional assegurado pelo art. 227, § 3o., VI da Carta Magna, objetivando efetivar a máxima proteção os direitos da criança e do adolescente. O texto constitucional impõe não só à família, mas também à sociedade e ao Estado o dever de, solidariamente, assegurar à criança e ao adolescente os direitos fundamentais com absoluta prioridade. Além disso, foi imposto ao legislador ordinário a obrigação de garantir ao menor os direitos previdenciários e trabalhistas, bem como o estímulo do Poder Público ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado.

Cabe aqui transcrever trecho do voto exarado pelo douto Ministro Relator reconhecendo que a proteção social do menor é um compromisso estatal, de modo que havendo situação de risco social impõe-se garantir com a máxima atenção a proteção à sobrevivência do menor, não havendo que se levantar impedimentos legais contra tal medida:

Não se deve perder de vista que a condição de dependência do menor resulta de situação essencialmente fática, cabendo-lhe o direito à pensão previdenciária sempre que o mantenedor (segurado do INSS) faleça, a fim de não se deixar o hipossuficiente ao desabrigo de qualquer proteção, máxime quando se achava sob guarda, forma de tutela que merece estímulos, incentivos e subsídios do Poder Público, conforme compromisso constitucional assegurado pelo art. 227, § 3o., VI da Carta Magna.

Assim, a alteração do art. 16, § 2o. da Lei 8.213/91, pela Lei 9.528/97, não elimina o substrato fático da dependência econômica do menor e representa, do ponto de vista ideológico, um retrocesso normativo nas diretrizes constitucionais de isonomia e proteção à criança e ao adolescente.

Isto posto, pode-se concluir que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça está calcado em fundamentos que permanecem hígidos no atual ordenamento jurídico, a despeito da promulgação da EC 103/2019 – supremacia da proteção constitucional reconhecida ao menor e ao adolescente e prevalência das normas específicas voltadas à proteção de direitos fundamentais de menores e adolescentes.

Nesse sentido, qualquer disposição em sentido contrário, esteja ela fixada em norma infraconstitucional ou mesmo em texto de emenda constitucional, investe contra a eficácia das normas constitucionais de proteção ao menor e ao adolescente. De tal modo, há de que reconhecer a invalidade de tais disposições, que não teriam aptidão para reduzir a incidência ou aplicabilidade de direitos fundamentais que contam com a máxima proteção constitucional.

É assente a preeminência dos direitos fundamentais no nosso ordenamento jurídico, motivo pelo qual os dispositivos constitucionais definidores de um direito fundamental devem ser interpretados de forma a garantir a plena eficácia desses direitos, o que impede a convalidação de qualquer norma que subtraia o alcance de tais direitos, prevalecendo o princípio do fortalecimento das garantias – nunca o contrário.

Firme nessas premissas, pode-se afirmar que o novo texto da Emenda Constitucional 103/2019 não tem o condão de invalidar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, calcado na interpretação do art. 227, § 3o., VI da Carta Magna, que mantém-se hígido, assegurando o compromisso do Estado de Direito com a máxima proteção dos direitos fundamentais de menores e adolescentes, o que impede a omissão de proteção a um menor em comprovada situação de contingência decorrente do óbito de seu mantenedor que lhe tinha a guarda.

Por fim, incumbe esclarecer que o tema – manutenção da qualidade de dependente do menor sob guarda – será objeto de apreciação no julgamento das Adin 4.878 e 5.083, momento em que o Supremo Tribunal Federal, a quem incumbe a palavra final na uniformização da interpretação das normas constitucionais, definirá se a exclusão da proteção previdenciária dispensada ao menor sob guarda atende aos princípios constitucionais que balizam a proteção dos direitos e garantias dos menores e adolescentes. Sinalizando, desde já, que a jurisprudência do STF tem caminhado em mesmo sentido que o STJ, reconhecendo a prevalência da proteção devida aos menores.

Fonte: Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário: IBDP

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