Medida Provisória 739/16: restrições indevidas nos benefícios previdenciárias por incapacidade
As intensas alterações normativas no campo previdenciário que vêm acontecendo em 2016 exigem que o estudioso do assunto as acompanhe de perto e faça um esforço para, igualmente, levar com presteza à comunidade jurídica suas opiniões sobre as drásticas reformas em curso.
Nesse esforço hermenêutico apresento uma rápida reflexão sobre a legalidade, constitucionalidade e pertinência social da Medida Provisória 739, de 07.07.2016, tratando dos benefícios por incapacidade (auxílio-doença e aposentadoria por invalidez).
Em primeiro lugar questiono a constitucionalidade da referida MP 739/16 à luz do que está disposto no art. 62, da Constituição Federal, que exige, para a edição de medidas provisórias, o preenchimento dos requisitos de “relevância e urgência”. Ora, novamente utiliza-se de medida provisória, instrumento normativo caracterizado pela precariedade e excepcionalidade, para tratar de tema estrutural: políticas públicas previdenciárias. A mera alegação de urgência econômica, decorrente de eventual dificuldade das contas previdenciárias, não é suficiente a preencher as exigências constitucionais previstas em medida provisória.
Pode-se questionar, também, se a referida MP 739/16 padece de inconstitucionalidade por representar retrocesso social, o que é vedado dentro do sistema constitucional atual.
Examinando a legalidade de alguns de seus dispositivos, passemos, em primeiro lugar, pela leitura dos arts. 43, § 3º, e 60, § 10, ambos da Lei 8.213/91, alterados pela MP 739/16, que permitem a convocação do aposentado por invalidez ou do beneficiário do auxílio-doença, a qualquer momento, para que o INSS constate a permanência das razões que ensejaram o afastamento ou aposentadoria, ainda que concedida judicialmente.
É claro que a autarquia previdenciária têm a prerrogativa de periciar os segurados aposentados para avaliar a continuidade da incapacidade laboral. Mas aqui algumas barreiras aparecem.
A redação dada pela MP 739/16 permite a convocação do aposentado ou beneficiário a qualquer tempo, o que entendemos que viola o princípio da razoabilidade, pois faculta à Administração Pública um poder ilimitado, atemporal e incondicionado. A ausência de restrições no trato administrativo não corresponde aos princípios democráticos que norteiam o Estado brasileiro. No caso de benefícios por incapacidade concedidos judicialmente, corre-se o risco de violação da garantia constitucional da coisa julgada.
A mencionada convocação a qualquer tempo pode produzir um ônus indevido em termos de convocações prematuras para constatação da permanência da invalidez, ensejando deslocamentos desnecessários e dispendiosos aos aposentados, assim como pode gerar a situação contrária: aposentados por invalidez há muitos anos, com situações de doença já consolidada, também se verem compelidos a estes deslocamentos ao INSS, muitas vezes dispendioso e de difícil realização face o delicado quadro de saúde em que se encontrem.
O art. 60, § 8º, da Lei 8.213/91 também tem sua redação alterada pela MP 739/16, passando a dispor que “sempre que possível, o ato de concessão ou de reativação de auxílio-doença, judicial ou administrativo, deverá fixar o prazo estimado para a duração do benefício”.
Tem-se aí a transformação em “dispositivo legal” do mecanismo da alta programada. Até então se havia tido mais pudor, e a alta programada era prevista apenas em portarias ou instruções normativas, de legalidade sempre rejeitada pelo Poder Judiciário. Agora, busca-se inserir a alta programada no bojo da própria Lei de Benefícios, na tentativa malfadada de conferir-lhe legalidade.
A legalidade, entretanto, é apenas aparente. O auxílio-doença exige, nos termos da lei, a constatação da incapacidade laboral total e temporária. Assim, mesmo diante dessa tentativa trazida pela MP 739/16, não se poderá adotar a pré-fixação do tempo de duração da incapacidade laboral, ainda que se trata de incapacidade temporária. Sempre deverá ocorrer a realização de perícia médica, pois essa necessidade de constatação concreta da incapacidade é inerente a esse tipo de benefício.
Agravando as ilegalidades trazidas pela MP 739/16, têm-se a alteração do art. 60, § 9º, da Lei 8.213/91, que estabelece que na impossibilidade de fixar o prazo de duração da incapacidade laboral temporária, esta durará 120 dias. Essa medida é totalmente apartada da realidade, pois a incapacidade temporária pode ter maior ou menor tempo de duração, a depender do quadro clínico do segurado.
O art. 60, § 10, alterado pela MP 739/16, prevê a possibilidade de pedido de prorrogação do benefício junto ao INSS, mas são conhecidas de todos as dificuldades práticas disso.
Por todos estes motivos, agrava-se a situação conhecida por limbo jurídico previdenciário trabalhista, hipótese em que o beneficiário do auxílio-doença recebe alta do INSS, mas a empresa onde trabalha não o recebe de volta, por constatar a incapacidade laboral ainda existente. Essa medida vulnera ainda mais as camadas sociais mais pobres e inseridas no mercado de trabalho nas situações de maior precariedade, e só deve aumentar a já excessiva litigiosidade previdenciária[1].
A configuração da incapacidade laboral é objeto de intensa disputa hermenêutica. Enquanto o INSS adota uma postura mais restrita, ligada ao quadro clínico, na esfera judicial ainda há espaço para outras interpretações mais amplas, com análise também das situações pessoais e sócio-econômicas do segurado. Debatemos isso à exaustão em nosso Curso de Processo Judicial Previdenciário.
As medidas preocupantes que vieram com a MP 739/16 envolvem também um amplo processo de revisão dos benefícios por incapacidade em vigor, e também a alteração da redação do art. 62, da Lei 8.213/91, que parece tornar obrigatória a submissão do segurado em auxílio-doença aos programas de reabilitação profissional patrocinados pelo INSS.
É sabido de todos os limites de efetiva garantia de empregabilidade que decorrem desses programas, o que só se agrava em um cenário atual, com números alarmantes de perda de postos de trabalho e desaquecimento econômico.
A redação dada pela MP 739/16 também gera preocupação pelo fato de assegurar o recebimento do auxílio-doença apenas até o momento em que o segurado “seja considerado reabilitado para o desempenho de atividade que lhe garanta a subsistência”, ou quando for considerado irrecuperável, e aí será aposentado por invalidez.
A hipótese que chama atenção é essa cláusula bem aberta sobre ser “considerado reabilitado para o desempenho de atividade que lhe garanta a subsistência”. Indaga-se: considerado apto por quem? Pela autarquia ou seus peritos médicos? Por órgãos relativos às políticas de emprego? Essa condição poderá (e certamente será) ser questionada judicialmente? E com que parâmetros.
Por fim, revoga-se a regra contida no art. 24, p. único, da Lei 8.213/91, que permitia o aproveitamento das contribuições previdenciárias anteriores à perda da qualidade de segurado, desde que, após a nova filiação, o segurado obtivesse ao menos 1/3 (um terço) das contribuições necessárias à aquisição do benefício previdenciário pretendido – hipótese muito comum no caso de requerimentos de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez.
A primeira leitura dessa alteração legislativa permite entrever que as contribuições previdenciárias anteriores não mais serão aproveitadas, embora uma interpretação constitucional (o art. 201 da Constituição Federal estabelece que o sistema previdenciário é contributivo, portanto tais contribuições devem refletir, de alguma maneira, em prol do segurado) permita conclusão em sentido contrário. Vislumbra-se aqui a inconstitucionalidade desse dispositivo específico.
A MP 739/16 nada mais é do que um dos primeiros reflexos da inadequada reestruturação administrativa imposta à Previdência Social, sem o necessário diálogo com a sociedade, transferindo-a para a pasta econômica (para o Ministério da Fazenda, conforme a MP 726/16), com o que se pretende dar racionalidade meramente econômica e fiscalista à gestão dessa importante política social.
[1] Os benefícios por incapacidade são daqueles que em maior grau ensejam a propositura de ações judiciais, sobretudo em face das inadequadas posturas do INSS. Sobre isso, veja-se o nosso Resolução do conflito previdenciário e direitos fundamentais (SERAU JR., Marco Aurélio, S. Paulo: LTr, 2015).
Fonte: GENjuridico